25.2.05

Fado Artur

‘ Ó Ar-tu-re, ó Ar-tu-re, an-da cá, an-da cá...´
Cancioneiro popular


I
O braço que indica
A voz que grita
Insistindo na orientaçao

O braço que cai
A voz que se esvai
Consumida p´la resignaçao

Resultado repetido
Jogo perdido
A equipa foi humilhada

O Sócio que insulta
E o rival que exulta
A cada jornada

II

Mas até há um tempo
Num passado recente
Era até respeitado

Treinador de sucesso
De bigode espesso
Farfalhudo e aparado

Treinou campeoes
Franceses, dragoes
Era ídolo no Norte

Mas fez-se poeta
E a conversa da treta
Levou-lhe a sorte

III
O braço ainda indica
A voz ainda grita
Ainda insiste na orientaçao

O braço sempre cai
A voz sempre se esvai
Consumida p´la resignaçao

E nesta intimidade
Só me sai a verdade
Vou-lhes revelar o que sinto

É um povo que se deleita
Pois justiça foi feita :
Obrigado, Sá Pinto.

16.2.05

Declaraçao Magiar II - Todos temos um pouco de Manuel Barbosa

‘ Chama-se Mantorras e vale 18 milhoes de contos... ’
Ex-Presidente do Alverca

Depois de um périplo pelas terras da boa gente do Mali, o Meszaros volta a ausentar-se para fazer uma nova propecçao por terras africanas. Ainda acreditamos nesse El Dorado perdido que já nos trouxe diamantes como Dibo ou Ali Hassan, N’Kongolo ou Parfait N’Dong. Uns mais lapidados que outros, na verdade, mas todos com uma mao cheia de carátes.

Desta vez vamos por terras de Guiné Conakry. Nao que o campeonato seja entusiasmante, um poço sem fundo de potenciais estrelas internacionais. Nao, nao vamos em busca de nenhuma estrela Guineana. Vamo-nos infiltrar no sub-mundo do Campeonato Guineano Inter-Campos de Refugiados, á procura de um novo Sessay ou um novo Musa Shannon. Vamos procurar potenciais vedetas Serra Leonesas e Liberianas que tenham fugido do seu país e se encontrem agora perdidas nalgum campo de refugiados, debaixo de uma tela de plástico das Naçoes Unidas. Tiramos-los de lá, metemos-los a jogar no clube dum amigalhaço e vamos viver á pála deles para sempre.

Como nao temos nenhum irmao mais novo que saiba jogar á bola, temos que fazer pela vida. É assim. Saúdinha. Onde e com quem quer que esteja.

14.2.05

A angustia da barreira antes do livre directo do Heitor

‘ Um homem tem que proteger sempre a sua felicidade’.
Férenc 79.61

Há uns anos, um amiguete do Wim Wenders, um senhor chamado Peter Handke, resolveu publicar um livro que se chamava ‘ A angústia do guarda-redes antes do Penalty’. O sô Handke utilizada o futebol, e em particular o duelo particular entre guarda-redes e marcador, para construir uma metáfora sobre relaçoes inter-pessoais e jogos psicológicos que finalmente se poderíam extrapolar a uma escala quase universal e aplicar a várias as situaçoes da nossa vida.

Permito-me, no entanto, discordar desta alegoria. Do título percebe-se automáticamente que o sô Handke nao percebe um cú de futebol.

A base de toda esta divagaçao é a previsivel impotência do guarda-redes para evitar um destino certo e todo um sacrificio, um jogo mental, que desenvolve para tentar contrariar esta determinada situaçao que lhe é, á partida, altamente desfavorável. No fundo, uma luta contra um destino já escrito. No meio desta reflexao existe um elemento importante para ajudar a eliminar a responsabilidade do Bela Katzirz de turno e que, se potenciado, se torna um trunfo que joga a seu favor neste duelo directo com o marcador, um factor de galvanizaçao: A inevitabilidade. É este elemento que me leva a pensar que ‘sim, coitado do guarda-redes, mas será mais angustiante do que estar na barreira num livre directo do Heitor, a 25 metros da baliza?’

Heitor, histórico lateral do Marítimo é personagem secundária nesta história, mas entra nela porque é um bom exemplo: O homem marcava livres com uma brutalidade atroz, absolutamente sanguinária, obsessionado pelo vício de marcar o golo ou, em alternativa, pelo fascínio cruel da incapacitaçao de um adversário. E ao contrário da maioria dos pé-canhao do futebol português ( como sao conhecidos quase todos os que marcam habitualmente livres directos a mais de 60 km/h) fazia-o com razoável acerto. Quando a bola nao entrava na baliza, era ver aquela massa de couro de 600 gramas a embater a uma velocidade de uns 150km/h na barreira a 9 metros de distância. Neste caso, o resultado era: Dor. Mesmo que protegessem o peito, a cara ou a nossa felicidade, havia sempre dôr. Muita dôr.

E o sentimento vivido pelos mártires da barreira diferencia-se do dos guarda-redes, precisamente pela alta probabilidade de presença da dor física, um elemento que nao existe normalmente na marcaçao de um penalty. Quando o árbitro apita a falta, prepara-se a colocaçao da barreira e vemos que é um jogador como o Heitor (ou podia ser o Branco, o Valtinho, o Barroso, o Dinda, o Celso) que se coloca á nossa frente, a impotência torna-se o sentimento dominante e o horror uma realidade: Terror x expectativa = uma angústia do caraças.

Quando se tem um Heitor á frente, sabemos que há uma elevada probabilidade que as alternativas seja apenas uma de duas: Ou sofremos nós, individualmente ou sofre a equipa, como colectivo. Por isso é de admirar a coragem dos homens da barreira, soldados de couraça de carne, na frente de um ataque de artilharia e ainda assim prontos a oferecer o seu corpo como um escudo, num estoicismo voluntário.

No momento entre o apito do árbitro e o pé de Heitor na bola, ali na barreira falta o ar, tensam-se o corpos, recorda-se num flash de milésimos de segundos todos os momentos importantes das suas vidas, mas unem as almas, na solidariedade única dos momentos críticos.

Esta tensao, esta impotência perante a fatalidade conhecida de um destino incontornável, era brilhantemente retratada por Sérgio Leone nos seus western spaghetti. Enquanto o Heitor pulula a uns metros da bola, ganhando balanço como um touro preparando a investida ao desprotegido forcado, ninguém consegue ficar indiferente áquele ‘ tu-ruru-ruru’ imaginário de uma flauta mexicana e tudo os movimentos e expressoes nos rostos dos demais destilam agonia e expectativa. E, tal como nos filmes de Leone, aparece-nos em grande plano a gota de suor que nasce e escorre fugidia pela fonte de um Rui Barros que sabe que, se é ele o boneco, entra juntamente com a bola dentro da baliza; os dedos que se movem em câmara lenta, aconchegando lá em baixo a felicidade do jogador; a respiraçao abafada escondida por detrás de um cotovelo protector; o bater do coraçao que se escuta por todo o estádio.

Mas tal como em qualquer cenário do Velho Oeste de Almería, este momento de tensao é a mais pura exaltaçao do sentimento de dever, como naqueles italianos feios, suados e de barba por fazer, que sabem de antemao que o Clint ‘Homem-sem-nome’ Eastwood lhes vai limpar o sebo. E mesmo assim estao lá. Com esperança mínima, mas estao lá. O que mais querem, tal como os homens da barreira, é que tudo se despache e que um dedo divino troque o pé de Heitor pelo de Quim Berto. E a bola sai pela linha lateral e fica tudo bem. Da mesma forma que todos os guarda-redes desejavam que fosse o Gregório Freixo a marcar sempre os penalties. Esta boa dose de angustia continuava a existir. Mas ao contrário...

8.2.05

O boxe-to-boxe

‘Posso ter ficado sem dentes, mas preguei-te uma rabeta.’
Férenc 11.11


Pode-se dizer que o Brasil está para o futebol português como a brasileira para o jogador português: Há alternativas, mas ninguém resiste á forma como fazem levantar o estádio.

Essa tradiçao mantém-se pela reputaçao dos profissionais que até cá têm chegado: Desde o Xerife Moisés de Andrade até á Paula, muitos deixaram a sua marca por cá. Um, no entanto, deixou-a nao só nos relvados como também bem selada nos corpos dos seus adversários. Na verdade é que podiam ser muitos, mas referimo-nos a um jogador em particular, que juntava o génio de um Marlon Alves com a delicadeza súbtil de um Tanta, a energia inesgotável de um Emerson com a raça acérrima de um Milton Mendes, a classe de um Pingo com o temperamento de um Donizete. Desta mistura explosiva e de meias puxadas para baixo, saiu Douglas.

Saiu do Brasil e aterrou em Alvalade para se instalar no meio campo e fazer história por todo o relvado. A sua natureza indomável nao lhe permitia resumir-se a uma determinada zona do terreno. No miolo iniciava o jogo, aí começava a sua luta, mas depois expandia-se: Onde havía uma bola por disputar ou uma canela que morder, aí estava Douglas, qual Macgyver, com o seu canivete suiço na ponta dos pitons, a desenrascar qualquer situaçao.

O seu carácter combativo levava-o a discutir com os seus treinadores por se recusar usar caneleiras, essas mariquices, tanto em jogos como em treinos. Na verdade, que maior estimulante existe para uma líbido futebolística que sentir o osso no osso, o adversário no chao e nós de pé, a driblar o seguinte, numa rata arrogante, mas sublime e seguirmos altivos em direcçao á baliza? Ou regressar para o baneário, com a camisola manchada de sangue e um dente agarrado ao cotovelo, orgulhosos por nao termos vacilado? E é nestes momentos, que o futebol se individualiza: ‘Sim, sou macho. Agarra-me a camisola, faz-me uma gravata, dá-me um chuto, enterra-me o piton no gémeo, abre-me o sobrolho. Faz-me o que quiseres, desde que quem fique com a bola seja eu.’ A vitória suprema do orgulho másculo. E no momento seguinte passas pelo adversário, olhas-lhe nos olhos enquanto sopras uma ranhada com as costas do dedo na outra narina: ‘És um merdas, quem nem consegues mandar um gajo ao chao’.

E Douglas, em passinhos pequeninos, meias em baixo e caneleiras lá no cacifo, enquanto puxava um braço ou lhe faziam uma tesoura, seguía num vai-vem imparável, ora matando ataques do adversário, ora assistindo o Bi-bota; ora ajudando o Duílio que se ficava nas covas ou subindo para marcar um genial golo de calcanhar. Douglas estava lá, nunca recusando uma luta, numa omnipresencia assustadora de rufia de viela, com a naifa na peúga, sempre pronto para uma richa de rua. E tal como a um moleque de favela apanhado numa rusga, a Douglas também lhe tiraram a liberdade quando as novas regras lhe obrigaram a usar as caneleiras nos jogos. As regras, a prisao dos homens-livres. Que mais iriam fazer? Mostrar cartoes amarelos nas entradas por trás? Proibir os socos nos pulmoes nos pontapés de canto? Ah? E chorei contigo, Douglas. Porque tal como tu adivinhava a castraçao das raízes do genuíno jogador da bola, o futebol de rua. Por ti Douglas, o ultimo dos rufias.

2.2.05

Aparício. Ou quando Setúbal perdeu um bom pescador.

‘ Por favor, deixem o homem ir aos chocos’
Férenc 6.71

Meszaros, o Huno tem a honra de apresentar um all-time favourite.

Filósofos do futebol, opinai: Marcar golos, por si só, é uma arte? Decididamente, as opinioes vao-se dividir: Uns mais pragmáticos dirao que ‘por si só, por si só, nao, só alguns golos poderao ser considerados obras de arte e como tal, nao se pode generalizar’. Outros mais apaixonados dirao que ‘ golos é a essência do futebol. Se futebol é arte, logo, golos sao arte’.

Entao pegando nesta corrente de opiniao, sigo o meu raciocínio. ‘Se golos sao arte, quem marca golos é um artista. Certo?’ E é neste momento, que esbugalho os olhos e me sinto como o Toni cada vez que chega para treinar a equipa do Colombo: ‘Minha santinha da Luz, mas onde é que me meti?!’ Para me desenrascar, penso: ‘ Calma. O Alex Bunburry marcava golos e era um artista; o Mapuata marcava golos e era um artista; o Cadorin marcava golos e era um artista. Sim.’ E fico mais descansado. Mas logo me torno um Vítor Manuel quando, entre 3 paragens cardíacas, penso: ‘Atao e o Aparício?’

Aparício. Em Setúbal conhecido por Parríçe. Metade homem do mar, metade matreco na área, todo ele um ícone do Bonfim. Nascido e criado por terras do Sado, gaiato rebelde crescido entre as Fontaínhas e o Viso, entre uns mergulhos na doca e um bafo escondido no cigarro roubado ao tio.

Aparício. Em Setúbal conhecido por Parríçe. Cresceu fortalecido pelo cheiro a maresia, pelo pregao do varino. Fez-se homem nas traineiras, a sua tez curtida pelo sol e pelo sal. Fez-se jogador na taberna do Luciano, entre um copo de três e um sopapo bem arreado, acabando a mamujar entre qualquer dupla de centrais á espera de um chuveirinho do Figueiredo ou um ressalto caprichoso numa jogada do Amâncio.

Aparício. Em Setúbal conhecido por Parríçe. Marcava golos? Na verdade é que há registo de um ou outro. Uma carambola, uma bolada nas costas que entra na baliza, um pé casual quando está a correr. Mas sempre marcava mais do que se mexía. E aí reside o grande busilis desta minha interrogaçao que assume contornos de semi-existencial: O homem jogava mais parado que o Assis (o actual empresário do irmao); nao recuperou uma única bola em 30 anos de carreira; mamujava um jogo inteiro; falhava cerca de 27,366,543 ocasioes de golos por jogo; era, simplesmente, a anti-estética do futebol. Mas porque marcava algum golito de trambolhao, poderá ser considerado um artista? A resposta é... sim. Por todas as razao acima.

Aparício. Em Setúbal conhecido por Parríçe. Mesmo sendo mau, muito mau, sempre conseguiu marcar um golito aquí e ali e sobreviver no futebol até aos dias de hoje. Sim, é de artista. Como um Joaquim de Almeida que tem a expressividade do King, mas nao há mais ninguém que faça de mafioso; um José Cid que canta pior que o Neno mas sempre aparece todo nú na Nova Gente. Um artista alternativo, em que o seu génio existe por uma mistura explosiva de desastre e persistência, coincidencias e sorte.

Aparicío. Em Setúbal conhecido por Parríçe, um ídolo das bancadas que tinham um grito especial para ele (‘A-PA-RÍ-CIO! A-PA-RI-CÍO!’), por ser um homem do mar, um chavalo da terra, que tinha o VIII Exército comprado com sandochas de coiratos e os sócios cativos comprados com queijadas de Sintra. Um artista Setubalense. Na glamorosa linha de Clemente, Toy ou Mister Gay.

E se alguém quiser ainda hoje observar a sua inéptica arte, é ir um domingo á tarde ao campo do Moitense, onde ainda a vai arrastando pelo pelado. Arte-lixo, kitsch e má. Mas, pronto, sempre é arte...