31.10.05

A triste história de uma entrada

‘… com a camisola numero 4, Freddy Kruger…’
Férenc 8:42

Futebol rima com sumol. E rima com vibração, espectáculo, emoção, êxtase. Mas também com frustração e dor. Principalmente se eras ponta de lança e estavas marcado por um talhante. Centrais duros, tanto de rins como de coice, andavam por aí ao magote e chegavam aos contentores, depositados num qualquer entreposto sombrio de algum manhoso empresário de jogadores. Nada tenho contra jogadores assim. Até acho que fazem falta. Mas pergunto-me: que razões pode ter alguém para querer mandar, definitivamente, um adversário para o estaleiro? Podia perguntar ao Petit, mas ele se calhar não sabe o que quer dizer a palavra ‘definitivamente’ e ainda levo com o queixo daquela cabeça made in Ilha-da-Páscoa. Eu respondo, Petit, não te chateies: Uma das razões pelas quais não sou jogador da bola, para além da minha inata falta de jeitinho (que como toda a gente sabe não é razão válida – Vide metade dos centrais da equipa do Colombo desde 1990), é saber que se tivesse a sorte de encontrar o Simão num campo, veria o resto do jogo desde o plasma lá do Linhó. Ou um Martelinho, tanto me faz. Ou qualquer outro gajo com uma cara tipo Secretário.

Ora é por isto que não jogo à bola. Mas isto sou eu, gajo consciente e bem formado (para além de giro e bem cheiroso), que nunca levaria alfinetes para um jogo, nunca cortaria as unhas em bico, nem comeria nenhuma gaja da Zara. Pronto, talvez pudesse comer uma gaja da Zara, desde que tivesse chegado há pouco tempo. Mas infelizmente para o Paulo Ribeiro, no futebol, há mais Balacós dos que Nénés.

Esta é uma história lúgubre e infeliz: Paulo Ribeiro (é importante trazer o elemento místico para a conversa, tipo atenuante) nunca foi um gajo com sorte. Ponta de lança da geração de Riade, da fornada de Valido, Morgado, Xavier ou Resende, falhou os seus 15 minutos de fama e barrigadas de riso à pala das folhinhas de menta penderocadas no bigode do professor Queirós, por se ter lesionado com gravidade umas semanas antes do Mundial. Na passagem para sénior, o Sporting não lhe deu lugar na equipa principal e o rapaz lá teve que fazer pela vida. Para o que importa aqui, vamos encontrá-lo em Setúbal, em 1996/97, e, mesmo já não sendo um garoto, a realizar uma boa época, depois de anos a calcorrear divisões inferiores. Titular indiscutível parece que finalmente está a demonstrar aquilo que sempre se julgou que valia. No entanto, a malapata voltou. E de vez.

Se tentarmos pensar em quezílias entre jogadores e entradas de carniceiro, daquelas que só um José Pratas era capaz de deixar passar, das que dão direito a pena de morte em 51 dos 50 Estados Americanos e que até fariam o Dinis levar as mãos à cabeça, há umas quantas que ficam marcadas na nossa memória, tal piton de alumínio em canela nua: Os célebres arrufos de Jokanovic e Latapy, que acabavam normalmente em pernas partidas; os sinais de afecto dentre machos de Paulinho Santos e João Pinto; a mocada do Bento na cara do Manuel Fernandes; os afagos entre Couto e Juskowiak; qualquer jogada de Nogueira, Valtinho ou Lula, por exemplo. A entrada do Acácio ao joelho do Paulo Ribeiro também resiste na minha memória (e com som…), como um dos momentos de mais arrepiante terror do futebol português.

Um Farense-Vitória em Faro. O Paulo Ribeiro, no ataque, cai para o lado do Acácio, que já lhe deu a entender não ter rins nem humor. Mas o rapazola está impertinente e atrevido. Pega na bola e manda-se para a frente de Acácio, tentando passar-lhe a uma distância segura daqueles cotovelos que pesam uns 20 quilos cada um. Mas o monstrengo não está para aturar diabruras. E para acabar de vez com a insolência do catraio, Acácio tira-lhe as medidas. O sangue já lhe fervia nas veias. O calor porventura toldava-lhe as ideias e os poucos neurónios que por ali andavam já estavam mareados de tanta correria. Tanta ousadia, arrogância e descaramento, roçam a falta de educação. Intolerável, a falta de respeito por alguém que corre muito menos. Cego pela humilhação, Acácio vê o meio metro de gente correr na sua direcção, a distância alcançável. Aponta a mira. Baixa a cabeça. Bufa e arrasta o pé direito repetidamente para trás, rasgando a relva, dando balanço. Avança. O sangue raia-lhe os olhos, o ódio inunda-lhe na alma. O petulante já está perto. E Acácio, com respiração presa e a veia do pescoço a latejar, levanta o pé e deita o corpo para trás, num voo arrasador. O reflexo do sol incendeia o piton, o seu brilho a ofuscar todo o estádio, como que obrigando as testemunhas a desviar o olhar do crime que está a uma brisa de acontecer. E então acontece: Acácio no ar, o pé levantado; o pazada na rótula; o grito de dor; os fôlegos presos; a incredulidade antecedendo a indignação. A bota de Acácio tinha voado com a força de um ariete na direcção precisa e premeditada do joelho de Paulo Ribeiro que estava mais perto. O resultado foi o previsto. Paulo Ribeiro agoniza. E é levado para fora do relvado. Para não voltar.

Não sei se foi intenção do central acabar com a carreira do outro. Mas que queria dar-lhe uma arrochada a sério, disso não há dúvida. A carreira de Paulo Ribeiro ficou enterrada naquele lance, mas a do Acácio também. Apanhou uns jogos de suspensão, mas a partir daí a carreira foi-se precipitando, até acabar perdido pelos distritais, lá no clube da terra. Com a mesma dignidade com que bateu no seu adversário.

E hoje, o pobre Paulo Ribeiro prossegue a sua vida de pessoa desafortunada fora dos relvados. Mas pior que ter uma carreira acabada prematuramente e um joelho com mais tarraxas que um móvel do Ikea, é ter uma irmã que é Presidente do clube de fãs oficial do Cristiano Ronaldo. Definitivamente, não é um homem com sorte. Mas podia ser pior: Podia ser Presidente do clube de fãs do Simão Sabrosa.